quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Brevíssimo conto sobre um conto

Diz que uma vez um conto criou coragem, resolveu virar romance e foi ao cinema.

- Ninguém me segura – dizia ele, ostentando seus parágrafos topetudos, seus diálogos audaciosos, seus maneirismos impertinentes.

Aí ele chegou, comprou ingresso e foi entrando, mas o porteiro o barrou:

- Esse filme é pra maiores.

- Sou um romance – arrotou o conto.

- Mm – fez o porteiro, olhando-o de alto a baixo. – Sei não. Você me parece um conto. Dos pequenos.

- Ah, essa diferenciação é muito subjetiva. Você mede uma história pelo número de páginas ou pela abrangência do conteúdo? Tem romances que não passam de um conto estendido. Tem contos são romances concisos.

O porteiro nem esperou para dizer:

- Olha. Não quero problemas com o juizado. Pelas características formais você é um conto, e esse filme é proibido para menores, ponto. – aqui o porteiro até enrubesceu muito de leve, pela rima involuntária.

- Ponto uma vírgula – disse o conto, já fazendo valer a espirituosidade tão característica de seus diálogos. – “As Neves do Killimanjaro” é um romance disfarçado de conto. “O Deserto dos Tártaros” é um romance que caberia muito bem nas poucas páginas de um conto. E aí?

Enquanto isso a fila desatava a crescer atrás deles, e não eram poucos os resmungos por aquela inesperada espera (claro, o autor aqui também dá as dele como se não tivesse ninguém olhando) na entrada do cinema enquanto na portaria se estabelecia esse debate sobre categorização editorial. Na fila tinha até um crítico literário que com ar sarcástico comentou para o porteiro ouvir: “Tô vendo que agorinha começa uma discussão sobre a diferença entre conto e crônica!”, ao que um gaiato, mais atrás ainda, rebateu: “Tô vendo que agorinha começa é o filme!”

- Olha, gente – disse o porteiro, conscienciosamente, tentando acalmar a fila. – Eu sei que vocês compraram seus ingressos e estão aqui pra usufruir grandes momentos da Sétima Arte. Mas eu cumpro minha obrigação, e não posso permitir que um conto se passe por um romance. Depois o ferro come é pro meu lado.

Só que enquanto ele falava o conto o contornou com um gingado e acabou entrando na sala de cinema. “Isso mostra como na mídia globalizada os limites entre os gêneros literários são perfeitamente transponíveis”, concluiu rapidamente uma conceituada resenhista de revista semanal, que também estava na fila e tentou fechar a história com essa frase de efeito, já que o filme estava começando e ninguém queria esperar mais.

ADENDO:

O problema é que o conto, por engano, entrou onde estava sendo exibido um filme iraniano – que poderia muito bem ter seus  160 minutos encurtados para uma hora e meia, no máximo. Assim, ao final da sessão, o conto saiu envergonhado, cabisbaixo e arrependido. Mas vai chegar em casa, acessar algum site de autoajuda, ler aquelas coisas de “você quer, você pode, você consegue”, e amanhã começa tudo de novo.