domingo, 27 de janeiro de 2013

Metáfora à deriva


Então o garoto, único sobrevivente do naufrágio, se deu conta de que não estava sozinho no barco salva-vidas. Á frente dele, pulsante, tão ameaçadora quanto indefinida, impunha-se uma assombrosa metáfora.

A princípio o garoto achou mais prudente fingir que ela não existia. Mas quando ele meio que ouviu a metáfora sussurando algo – um murmúrio muito abafado, para dentro, mas provavelmente dirigido a ele – , tomou coragem e perguntou:

- O que você disse aí?

- Eu? – perguntou a metáfora, olhando ao redor, como se houvesse mais alguém no barco.

- É. Você sussurrou algo.

- Eeeeu? – agora a metáfora parecia dissimular. – Ah. Mm. Eu não. Não falei nada. Nadinha.

O garoto podia jurar que ela tinha murmurado “Nem te ligo, farinha de trigo...”.

- Então está certo – ele voltou a falar. – Não adianta eu fingir que você não existe nem você fazer o mesmo. Vamos lá: você é o quê?

- Sou uma metáfora – disse a metáfora.

- Mas metáfora de quê?

- Não faço ideia. Por pressão da editora, essa história precisava ficar pronta logo e não deu tempo do autor me elaborar. Fiquei só como uma metáfora apriorística.

- Certo – disse o garoto, pressentindo que daquele mato metafórico não sairia coelho simbólico. – Eu devo ver você como. De repente... um tigre?

- Há – riu-se a metáfora. – Tigres são departamento do Jorge Luis Borges. Meu autor não chega a tanto.

- Um... elefante?

- Carlos Drummond de Andrade. E outra, nós não estaríamos mais aqui neste bote se eu fosse um paquiderme, huh?

O garoto esperou um pouco para dizer:

- Você... sou eu? Este seria o momento da  confrontação inevitável de mim mesmo com minha verdadeira essência, e preciso enxergar nela a verdade, olhando meu medo primordial bem nos olhos e...

- Ei, não sou tão mal acabada.

- Certo, certo – e o garoto já começava a se impacientar. – Você é o princípio e o fim de todas as coisas, a denotação da impermanência?

- Putz, estamos é jogando Imagem & Ação? – resmungou a metáfora, entediada. – Então deixa eu agora – e aí a metáfora começou a gesticular, dando a entender que se referia a algo emergente, volumoso, devastador.

- Um... uma... – disse o garoto, tentando adivinhar. – Ah, já sei! A crescente insensibilidade nas relações, marca registrada do século XXI?

Não. A metáfora tentava avisar que atrás dele vinha uma onda de dezesseis metros de altura, que inclusive fez o barco virar e arremessou ambos para o fundo do mar. Mas nem tudo se perdeu: a história virou filme e a metáfora ganhou o Oscar de efeitos visuais.