domingo, 29 de abril de 2012

Ensaio Sobre a Preguiça

A Preguiça é a mãe de todos uns negócios aí que agora eu realmente não lembro. Seria o quê, de todos os filhos da puta? Não, nada tão incisivamente autocrítico. Eu sei que ela é mãe de todos os qualquer coisa, que tanto podem ser suplentes de deputados do DEM quanto, sei lá, bichinhos. Não sei se faz sentido, mas soa bem: os bichinhos também são filhos da Preguiça. Daí os bichos-preguiça. Pode ser. Realmente não lembro.


*********

Dizem que a Preguiça mata. Logo, além de mãe ela também é assassina. Temos então que a preguiça é uma espécie de Ma Barker, com a cara da Shelley Winters, empunhando uma metranca fumegante e mascando um charuto apagado. E as manchetes: “Preguiça mata vinte e oito durante missa do Papa na Praça de São Pedro”. “Catorze mortos pela Preguiça durante gravação de um programa de entrevistas no Canal Futura”. Vai ver os caras mexeram com os bichinhos de que ela cuida, aí pá. Shelley Winters, você sabe, nunca perdoa.


*********

Mas tem um detalhe. A Preguiça morre de preguiça de ser associada à malemolência brasileira. “Macunaíma é um personagem um tanto unidimensional, sabe”, disse ela em recente coletiva. “Eu preferia ser literariamente corporificada por uma personagem da Jane Austen. O clima é melhor, as roupas também, e ah, as festas, as festas. Já pensou, Razão, Sensibilidade e Preguiça?” A Penguin Books ficou de pensar no assunto.


*********

A Preguiça é vilipendiada. A Preguiça tem a imagem distorcida. A Preguiça é a prostituta da Babilônia. A Preguiça sempre tem seu significado intrínseco violentado. A Preguiça é o bode expiatório. A Preguiça é apressadamente apontada como o elemento pernicioso do caráter nacional. A Preguiça é invariavelmente responsabilizada pelo desandar do sistema educional. A Preguiça é tida e havida como a culpada por testemunharmos a orgia institucional em Brasília e não fazermos nada. A Preguiça sempre é acusada de ser a vilã do cenário de imobilidade subtropical. E quer saber? A safada gosta.


*********


A Preguiça é a mãe de todos os – o quê, o quê? Caramba. Esqueci mesmo. Minha intenção, para fechar o texto, era retomar o tema do primeiro tópico – me lembrando então num estalo de quem a Preguiça é mãe – e arrematar que eu estaria, tcharan!, com preguiça de terminar o texto. Não critiquem, seus filisteus: eu sempre utilizo essa técnica enganadoramente cômoda e previsível para concluir meus posts. Certo ou errado, é mais forte que eu. Aliás, é mais que um maneirismo. Chega a ser vício, puro vício. Mas posso garantir que eu preferiria, ao invés de ficar me safando com estes truquezinhos metalinguísticos tão viciantes, me lembrar logo de quem diabos a Preguiça é mãe. Saco.

domingo, 8 de abril de 2012

Cena de Páscoa

Cenário: Santo Sepulcro, 33. d.C., manhã de domingo de Páscoa.
Personagens: Arcanjo Gabriel, Arcanjo Miguel e Jesus.

Escuro total. A pesada pedra redonda que serve de porta do sepulcro é rolada lentamente por Gabriel e Miguel, o que inunda de luz o cenário. Nele, vemos a tumba fechada.

MIGUEL: (recostando-se na pedra redonda, após terminarem de rolá-la) Putz, que dia é hoje?

GABRIEL: Domingo.

MIGUEL: Ainda bem que o Shabat foi ontem... Porque descansar carregando pedra, vou te contar... hein? Hein? Hein?

GABRIEL (fazendo um muxoxo): Você já foi melhor com piada.

MIGUEL: Ah, vá. Quando eu fiz aquele stand-up anteontem falando que o Lúcifer era o anjo caído porque caía em tudo que era pegadinha, você riu que foi uma beleza.

GABRIEL: Eu não ri, eu fiz ha-ha-ha. Você não percebe ironia?

MIGUEL: Você é que não percebe sarcasmo.

GABRIEL: Escuta, vamos ao que interessa... traz o aparelho?

Miguel sai murmurando “mnhemerelho, menhenmerelho”, vai brevemente até lá fora e volta com um aparelho portátil de ressuscitação.

GABRIEL: Agora retira a pedra de cima da tumba. E sem piada manjada, dessa vez.

MIGUEL: (contrariado, equanto retira a pedra) Interessante, isso. Você foi o eleito pra dar a notícia à Virgem, quando ela ficou grávida. Agora, você foi escolhido pra comandar a ressuscitação. E eu aqui, só carregando peso?

GABRIEL: (impaciente) Ah, o fato de você ter aberto o Mar Negro quando o Moisés estava fugindo do Faraó não deve ter influenciado em nada, né? O coitado, lá, afobado, jurando que o Mar Vermelho ia se abrir, passando a maior vergonha na frente dos hebreus, e você...

MIGUEL: E eu tenho culpa de ser daltônico?

GABRIEL: (estendendo a mão, dando a entender que quer encerrar o assunto) Desfibrilador.

MIGUEL: (resmungando) mnhembrilador, mnhembrilador... Pronto, tá aqui.

Gabriel pega os eletrodos, esfrega um no outro e os coloca sobre o peito do cadáver dentro da tumba.

GABRIEL: Carga!

Miguel aperta um botão no aparelho portátil. Expectativa.

GABRIEL: (observando que o cadáver nem se mexeu) Ué... Acho que capricharam na crucificação... (volta a esfregar os eletrodos um no outro) Carga de novo!

MIGUEL: Você tem certeza de que hoje é domingo?

GABRIEL: (perdendo de vez a paciência) Escuta, se eu quisesse ter certeza disso, trazia um calendário, ao invés de você – inclusive um calendário ia ter piadas melhores! Agora faz o que eu mandei: carga!

MIGUEL (resmungando): mnhenarga, mnhenarga...(aperta novamente o botão).

GABRIEL: (depois de constatar que o cadáver continua imóvel) Caramba... O que os romanos são ruins em clothing style eles são bons em crucificação... Fizeram o serviço completo...

De repente, de um canto escuro do sepulcro onde ninguém estava reparando, salta Jesus, rindo.

Jesus: Tcharaaan! Surpresaaaaa! Eu já ressusciteeeei! Esse aí era um dos ladrões que estavam do meu lado, que eu coloquei aí só pra...

Gabriel e Miguel levam um susto, morrem do coração e caem os dois na tumba.

Jesus: Er.. oi? (pega o pulso de Gabriel, observa, depois faz o mesmo com Miguel. Então olha o quadro geral – os três cadáveres na tumba – e se põe a roer as unhas) Ih, agora é que o Velho me crucifica de novo...

Pausa. Jesus vê então o aparelho de ressuscitação, pega os eletrodos do desfibrilador e fica olhando, confuso, dando a entender que sozinho não vai poder fazer nada com aquilo. De repente ele ouve barulho lá fora, vai até a porta do sepulcro, parece ver alguém e se entusiasma.

Jesus: Madalena! Você não morre mais! Tava pensando em você! Ei, que cara é essa, parece que viu um fantasma? Vem cá, você pode me ajudar aqui com...

FIM

domingo, 1 de abril de 2012

Love and Death

Era um continho bem, mas bem raquítico, nascido prematuro, sem condições ainda de ser divulgado nem lido. Daí o autor tê-lo colocado na incubadora: todos os dias ele vinha visitar o conto tão mirradinho, de arcabouço frágil, situações incipientes, diálogos padecendo de disritmia e falta de fôlego — tanto que respirava por meio de aparelhos, aqueles tubos e aqueles êmbolos tão grandes e barulhentos para um continho como ele. O autor enfiava a mão na incubadora pela abertura circular e, com a luva de borracha, tocava nos dedinhos do conto, que de tão miudinhos mal conseguiam se fechar na ponta do polegar dele. O autor sussurrava, quase cantando, quase mais pensando do que falando, “Um dia você vai ser incluído na antologia do século e nós vamos rir disso tudo”. E o autor gostava de achar que os dedinhos do continho davam uma apertadinha em seu polegar. Mas lá pelo segundo ou terceiro dia, enquanto pajeava o continho, o autor percebeu as enfermeiras rindo e cochichando, atrás do vidro da sala da incubadora. Então ele, que além de arrebatado era um autor suscetível a certo tipo de crítica, foi ver que tititi era aquele – e uma das enfermeiras não demorou a soltar que corria por aí que aquele continho, sabe, podia não ser dele. Mas — ela emendou — era só boato maldoso, imagina. De gente invejosa. Falou e foi embora. O autor sentiu o chão rodar e faltar ao mesmo tempo, a garganta entalar, e depois de uns cardíacos minutos voltou até a incubadora. Enquanto o sangue lhe voltava devagar ao rosto ele observava o continho mirradinho, de olhinho fechado, dormindo. E esperou, esperou, esperou até ficar tarde, até não ter ninguém por perto – aí foi à máquina de oxigênio da incubadora e nem hesitou para desligar. O barulho parou mas não de repente. O autor apagou a luz da sala, pegou o casaco e só então lembrou que tinha guardado no bolso um pacote. Um pacote contendo uma roupagenzinha para o continho, para ser colocada assim que pudessem ir para casa. Uma roupagenzinha pequenininha, engraçadinha, do tamanhinho exato do conto e que revestiria a criaturinha de um estilo e de um acabamento que fariam as visitas dizer “é a sua cara”. O autor olhou para trás, guardando no labirinto do ouvido o seco e esticado silêncio da máquina de oxigênio, foi até a lata de lixo, jogou o pacote e saiu do hospital. Lá fora a brisa carregada de motes para histórias de amor e morte circulava sem muita pressa, com alguma melodia e um tanto assim úmida.