terça-feira, 13 de novembro de 2012

A Cantiga da Manguaça Filosófica, agora em versão bilíngue!


Um duplo presente para a minha meia dúzia de quatro ou cinco leitores, a ser curtido no ritmo dos folguedos alcoólicos de fim de ano: primeiro, a letra original de um dos maiores hits do Monty Python, The Philosophers' Drinking Song. Em seguida, a versão para o português, cometida por este que vos posta. Se eu não for condenado ao inferno pela tentativa, vou pelas rimas. 

Se não me falha a memória eu estava inteiramente sóbrio quando a fiz – mas se o leitor já estiver no grau, sem problemas: basta seguir a bolinha. Tá, as duas bolinhas


THE PHILOSOPHERS’ DRINKING SONG

(Letra e música: Eric Idle)


Immanuel Kant was a real pissant
who was very rarely stable.

Heidegger, Heidegger was a boozy beggar
who could think you under the table.

David Hume could out consume
Wilhelm Friedrich Hegel,

And Wittgenstein was a beery swine
who was just as sloshed as Schlegel.

There's nothing Nietzsche couldn't teach ya

'bout the raisin' of the wrist.
Socrates himself was permanently pissed.

John Stuart Mill, of his own free will,

after half a pint of shandy was particularly ill.
Plato, they say, could stick it away,

'alf a crate of whiskey every day!
Aristotle, Aristotle was a bugger for the bottle,

and Hobbes was fond of his Dram.
And Rene Descartes was a drunken fart:

"I drink, therefore I am."

Yes, Socrates himself is particularly missed;
A lovely little thinker, but a bugger when he's pissed.




**********



A BALADA DOS FILÓSOFOS BEBUNS

(Versão feita aqui no Tom O'Bedlam)


Immanuel Kant, bebum praticante
Pra entrar na manguaça era uma beleza

Heidegger, Heidegger, com seu steinhäger
Pensava o mundo debaixo da mesa

O David Hume, chegando ao cume:
ultrapassou Wilhelm Friedrich Hegel

E o Wittgenstein, da matéria era o pai:
Travava bonito, feito o Schlegel.

Beber pro Nietzsche já era um fetiche:

O eterno retorno do copo cheio
E Sócrates bebaço, pra esquecer que era feio?

John Stuart Mill, ele mesmo assumiu:

Depois de um goró ficava bonito
O Platão, da caverna, e bom de taverna

Com um bom uísque, entrava no agito
Aristóteles bebeu, em pleno Liceu

Pro Hobbes um copo era sempre bem visto
E o René Descartes, chegado na arte:

"Bebo, logo existo!"

Pois é, tem o Sócrates – e esse não engana;
Filósofo baixinho, grande pé-de-cana!

domingo, 21 de outubro de 2012

Tália, a musa

Depois do escritor chegar a clamar ao Oimpo que enviasse uma musa para ajudar na criação do bendito texto que não saía, tocaram a campainha. Era o entregador de pizza. O escritor viu que faltava orégano na calabresa e mandou de volta. Daí a meia hora tocaram de novo a campainha e entrou a moça com a cara da Jennifer Connely, usando uma túnica fininha de algodão, coroa de hera, sandálias prateadas e carregando a máscara risonha.

– Uau – disse o escritor. – Quando pedi pra capricharem mais no tempero não pensei que fossem levar ao pé da letra.

– Mmm – disse a moça. – Timing meio mais ou menos. Mas dá pro começo. Pois então, vim atender a seu chamado.

– Você é...? – perguntou o escritor, pensando se seria um bônus de Natal da agência de acompanhantes.

– Não sou a Jéssica nem a Dayanne que você pensou aí. Sou a Tália.

– Tália? – disse o escritor, tentando se lembrar. – Mas Tália não é... mm... a musa da Comédia?

– Ah, finalmente. Achei que eu estivesse falando grego. Ou quando muito dialeto jônico.

O escritor sentou-se ao computador, mais contrariado que surpreso. Aí falou:

– Mas, das nove musas, por que logo a da Comédia?

– Zeus escreve certo por linhas tortas, ou algo parecido. Podemos começar?

– Tá, entendi a piada – disse o escritor. – Mas ainda assim: meu negócio é drama! Minha especialidade são histórias secas, naturalistas. Densas. Viscerais. Um soco no estômago do leitor, entende?

– Então me considere uma sparring que veio melhorar seu upper, benzinho. Soco no estômago? Ew.

O escritor olhou para cima, como se clamasse a alguma entidade:

– Mas eu sempre quis ser reconhecido como autor sério! Não atravessei o Dostoiévski inteirinho e treinei aqueles maneirismos pra isso! – e, erguendo as mãos ao céu: – Por quê?

– O Olimpo é pra lá, benzinho – e a moça apontou a janela à esquerda.

– Recuso a pecha de piadista – prosseguiu o escritor, fingindo que não tinha ouvido. – Não quero ser o arauto da leviandade. O literato da irresponsabilidade. Fazer rir é demérito! O mote, o trocadilho, o joguinho de palavras, os diálogos bate-e-vira com escada pra piada e pro punchline? Isso denigre meu talento!

– Benzinho, eu sou mandada da Grécia até essa quitinete esculhambada, mal decorada, com a tampa do vaso levantada, de frente pra dois terrenos baldios e você reclama de demérito? Já parou pra pensar na vista que temos lá do Olimpo?

O escritor voltou-se à tela do computador:

– Certo. Me desculpe. Não pretendi ser ríspido. Er... Podemos ao menos tentar uma comédia dramática? Um romance onde o humor aos poucos vá dando lugar à denúncia social, e...

– Uh, sweetie, você passou bem pelas primeiras fases: negação, revolta e agora a negociação. Depois vem a depressão (nada que aquelas quatro latinhas de Itaipava lá na geladeira não resolvam) e finalmente a aceitação. Portanto, mãozinha no teclado e manda uma comédia rasgada!

Nisso tocaram a campainha. Era o entregador de pizza de novo. A musa atendeu, viu que ele era a cara do Benicio Del Toro de banho tomado, desceu a máscara e abriu um sorriso:

– Hm, a clássica premissa cômica. Ulalá, como musa não posso deixar passar – Virou-se então ao  escritor e: – Vai trabalhando aí, tá, benzinho? Tenho umas coisas, hã, protocolares a tratar agora. Liturgia do cargo.

– Mas... – balbuciou o escritor. – E eu fico aqui  sozinho? O que eu escrevo? O que eu faço?

– Desbanca o Verissimo do ranking, ué. Aproveita que ele anda meio desnorteado e pouco inspirado por conta das falcatruas do PT e ó: mete bronca. Fui. Beijo.

sábado, 13 de outubro de 2012

Filosofia 0800


- Oi! Você ligou para o Tele Ologia. Se você deseja tratar da Metafísica Aristotélica, tecle 1. Se deseja tratar de Teleologia Escolástica, tecle 2. Se deseja tratar do Mecanicismo em Descartes, tecle 3. Se desejar debater com um de nossos atendentes, tecle 4. Se...

- Peep, peep, peep, peep.

- Você optou por debater com um de nossos atendentes. Aguarde alguns instantes. Para sua segurança, essa ligação será gravada.

(Musiquinha: ‘Assim Falou Zaratustra’, em ritmo de balada de elevador)

- Tele Ologia, boa tarde, meu nome é Sheila. Com quem eu falo?

- Aqui é o Lauro. Olha, eu quer...

- Pois não, Lauro.

- Oi...?

- Pois não, Lauro.

- Ah. Tá. Olha, Sheila. Seguinte. Eu queria reclamar do reducionismo a que se chegou na explicação da finalidade em si do Universo, e...

- O senhor já tentou voltar à tábula rasa, esperar dez minutos e reiniciar o processo dialético sobre a finalidade em si?

- Como...?

- O senhor já tentou voltar à tábula rasa, esperar dez minutos e reiniciar o processo dialético sobre a finalidade em si?

- Hã. Sim, já tentei, Sheila, e não adiantou. Continuo angustiado porque acho que restringir a questão ao embate Deísmo versus Teísmo é um despropósito, já que...

- Senhor. Vou então agendar a visita de um filósofo à sua casa, para um confronto tête-à-tête com a finalidade de estabelecer o axioma dialético para o tema em questão, e...

- Não, não, Sheila, eu não quero a visita de um filósofo! Eu quero resolver tudo por aqui mesmo! Só quero deixar claro que Deísmo e Teísmo é um reducionismo constrangedor, e...

- A visita está marcada para as próximas quarenta e oito horas, senhor. O seu endereço continua sendo rua Itamaracá, edifício Endauro Rebouças, número...

- Sheila, Sheila! Cê me ouviu? EU NÃO QUERO UM FILÓSOFO AQUI EM CASA! Quero resolver tudo por aqui, agora! Pode ser?

- ...

- Oi?

- Senhor.

- Sim?

- Eu sou apenas uma atendente, senhor. Gostaria de contar com sua compreensão. Estou fazendo o possível.

- Er. Tá. Tá, Sheila. Pode mandar o filósofo, então.

- A visita está marcada para as próximas quarenta e oito horas, entre as oito e as dezoito, e..

- Peraí, Sheila... Tem que me passar um horário exato. Eu trabalho, então não sei se...

- Fica alguém em casa, senhor?

- Oi?

- Fica alguém em casa?

- Ah. Fica. A empregada.

- Ela pode receber o filósofo?

- Olha. Ela lia muito Lair Ribeiro, mas ultimamente anda questionando a sintaxe dele, então talvez...

- Visita agendada, então, senhor. Queira por gentileza aguardar na linha, porque procederemos a uma avaliação do atendimento, e..

- Sheila.

- Pois não, senhor?

- Lembra a hora em que você falou tête-à-tête?

- Pois não, senhor.

- Assim. Você podia repetir... mas devagar, mais arrastado, e caprichando no sotaque? E fazendo a voz um tiquinho mais rouca? Essa minha angústia teleológica tinha acabado com minha libido, mas esse seu tête-à-tête foi... Alô? Sheila? Oi? Alôôô...? Sheila...?

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O dia em que o próprio Stand-Up resolveu fazer um stand-up

“Se tem uma coisa que eu não entendo é por que todo comediante, quando vai me fazer, começa com ‘Se tem uma coisa que eu não entendo...’. Caramba, tanto jeito de começar – por que não com ‘Olha, agora eu entendo tudo! Então tá aqui o dinheiro de vocês de volta!’ (risos) Aliás, se todo stand-up começa com ‘Se tem uma coisa que eu não entendo’, deveria terminar com ‘Como assim, não precisa voltar amanhã?’ (risos) Mas já que estamos falando em começar, acho que o primeiro stand-up da História foi o Sermão da Montanha: um judeu falando, uns olheiros italianos infiltrados na platéia e os vendilhões ficando com o dinheiro. (risos) Sim, sim. Na verdade eu comecei a fazer sucesso nos Estados Unidos quando se juntaram a Grande Depressão e a Lei Seca: na pindaíba, tiveram que vender todos os móveis das peças de teatro e os atores acabaram de pé. E quererem proibir o álcool foi a grande piada. (risos) Bom, alguns anos depois precisei de um tempo de introspecção, e me retirei para o deserto. Mais precisamente o deserto de Nevada, fazendo grana em várias casas noturnas de Las Vegas. (risos) Claro, os tempos mudaram e, com a evolução dos costumes, passei aos poucos a ser praticado também por negros, mulheres, gays e – suprema prova de tolerância de minha parte – canadenses! (risos) Agora, vocês precisam conhecer a minha versão brasileira. Para vocês terem uma ideia, dizem que um comediante brasileiro de stand-up cruzou com uma piada engraçada na rua, mas os dois não se reconheceram. (risos) Mas a degeneração mesmo virá quando fizerem uma versão escrita de mim. Que graça pode ter um textinho entre aspas, cheio de (risos) no meio e...

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

O Stand-up de D. Pedro I

Bom, ninguém pode me criticar por resolver fazer um stand-up numa hora dessas, aqui às margens do Ipiranga: sou português, minha mãe tinha bigode e só fiquei eu no Brasil depois que todo mundo se escafedeu. Piada pronta, né? (risos dos Dragões da Independência) Pois então. Como estou com uma baita diarreia, acabei de gritar “Incontinência ou sorte” – se eu quiser chegar em São Paulo com as calças limpas, claro – mas já percebo que meu relator de viagem aqui anotou uma frase ligeiramente diferente. (risos dos Dragões da Independência) Enfim, prefiro que esse 7 de setembro no futuro possa cair sempre numa quinta ou numa terça, pra poderem enforcar o feriado e eu roubar o show daquele dentistinha mineiro que acha que forca é com ele. (risos dos Dragões da Independência). Aliás, em termos de cenário, vocês repararam no singelo caipira aqui do lado, o do carro de boi, que não para de olhar para nós? Pois é, quando acabar isso
 tudo aqui, dêem voz de prisão ao sujeito, confisquem o carro dele e passem para mim, que meu traseiro não vai aguentar chegar a Santos numa sela. (risos dos Dragões da Independência) E lembrei agora: minha mulher, a imperatriz Leopoldina, está pensando em montar uma escola de samba com o nome dela e acho que vocês, Dragões da Independência, podiam participar com essas fantasias andróginas, esvoaçantes, cheias de penachos, adereços e penduricalhos. (Nenhum, absolutamente nenhum riso dos Dragões da Independência). Ah, agora ninguém acha graça? Mas todo mundo vive morrendo de rir do estilo do meu bigode, né? Pois saibam que é por causa dele que as pessoas reconhecem que eu sou filho da minha mãe, e... Opa, cheguem para lá, vão chegando para lá! (...)

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

O stand up de Sigmund Freud


“(…) Pois então, para os que acham que eu falei que todo homem sonha possuir a própria mãe, recomendo que releiam com calma o que eu escrevi. Muita calma mesmo – o tempo suficiente para seu pai sair de casa e aí sim vocês poderem ir lá traçar a velha.(risos) Mas, falando sério, dizer que eu cunhei a expressão Complexo de Édipo como sinônimo de incesto é ir longe demais: o verdadeiro complexo de Édipo era ser um fracasso com as menininhas de Tebas e só conseguir se dar bem com a terceira idade. (risos) E não procedem as fofocas de que eu usava divãs em minhas consultas como merchandising disfarçado para a indústria moveleira vienense. Eu mesmo fabricava aqueles divãs, e vendia aos pacientes a preço de custo! (risos). Aí, quando publiquei A Interpretação dos Sonhos, em 1900, minha sincera intenção era quebrar todos os tabus possíveis – mas o livro encalhou e acabei quebrando só a editora. (risos) Mas eu fui um homem adiante do meu tempo. Fui o primeiro a cobrar por hora e dizer o que o cliente tinha medo de escutar - hoje existem os analistas de risco do mercado financeiro! (risos) E agora, mais de cem anos depois de inventar a psicanálise, me vejo fazendo stand up nesse night club e noto que só uma coisa mudou: quem fala sou eu, vocês é que me ouvem – mas quem paga continuam sendo vocês! (risos) E você aí da plateia, que está ameaçando jogar esse tomate em mim, das duas uma: ou você é antissemita ou é junguiano. Em qualquer um dos casos, pode pegar esse tomate e (...)”                                               

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Fábula: Declínio e Queda de uma Máscara

 

Era uma vez, nas coxias de um night-club, uma máscara do Groucho Marx que, cansadíssima de ser utilizada por comediantes que a colocavam para se anunciar groucho-marxistas – como se tivessem acabado de inventar a piada –, resolveu se disfarçar, tirando os óculos e tascando um aplique no bigode, para passar despercebida e não penar mais.
Até um comediante achá-la a cara do Nietzsche, passar a mão dela, colocá-la e dizer Deus morreu e eu também não ando me sentindo muito bem! A máscara, desesperada, conseguiu escapulir, tirou a sobrancelha e radicalizou no aplique, com tintura branca.
Só que aí foi pega por um comediante que a colocou e disse Quem morreu agora, Nietzsche? Quem?? Na terceira tentativa de fuga, a máscara tentou se recompor mas só teve tempo de colocar de volta a sobrancelha.
Isso porque um humorista passou a mão nela para usá-la dizendo Pronto, agora sou o Marx original. Chupa, Groucho! Mais uma vez a máscara conseguiu fugir – e finalmente voltou à sua primeira configuração.
Mas aí o night-club foi alugado por uma noite para uma troupe de stand-up brasileiro. A máscara ficou lá na coxia mesmo, preterida por centenas de alusões a viados, empregadas, nordestinos, gordos, anões, louras burras e cornos. A máscara acabou se sentindo abandonada. Tem gente que nunca, nunca está satisfeita.

domingo, 8 de julho de 2012

Samba-enredo em homenagem ao Bóson de Higgs


Foi num tempo tão distante
Mais de treze bilhões de anos atrás
O Universo não era nada
E de repente cresceu com todo o gás
O responsável foi o Big Bang
Que fez o Cosmos começar a sambar
Com os quarks dando a percussão
E os elétrons se metendo a requebrar
Mas até o Bóson de Higgs aparecer
A massa mesmo não havia
Ele fez festa na ala das baianas
E alvoroçou toda a  bateria!

(Refrão)
Abre alas que a massa vem aí
O Peter Higgs é o descobridor
E é por causa dele, ai, mulata
Que de corpo a alma, declaro meu amor!

O bóson era a comissão de frente
Pra frear a energia incontida
Dava uma paradinha nas partículas
E a massa estreava na avenida!
Aí então vieram as nebulosas
Acertando o ritmo de montão
Pintaram assim as grandes galáxias
Levando dez em evolução
O Bóson de Higgs é o divisor
Explicando tudo o que tá aí
Os sóis, planetas e asteroides
E até nossa escola, na Sapucaí!

(Refrão)
Abre alas que a massa vem aí
O Peter Higgs é o descobridor
E é por causa dele, ai, mulata
Que de corpo a alma, declaro meu amor!

domingo, 24 de junho de 2012

Esquete decadente, meu Deus

Segunda-feira, dez da manhã. Estamos no deck da piscina dos Almereyda-Bratt, família quatrocentona mas – graças aos poderes mágicos do dr. Pitanguy – com um corpinho de bicentenária. No deck estão Dudi Bratt, campeão de pólo cujo hobby é não aparecer na empresa da família, e Vivi Bratt, née Prado, cujo hobby é acordar de vez em quando. Dudi prepara seu Blue Hawaiian no bar da piscina e Vivi, estirada na cadeira, acorda de quinze em quinze minutos para não perder a forma.
Entra em cena Fred, dezesseis anos, filho único do casal.

FRED: Papai, mamãe...

DUDI: (despejando o gelo picado no drinque) Wow, as aulas de matemática não foram em vão. Ele já sabe contar.

FRED: Bom, é pra isso mesmo que vim, papai. Eu preciso contar.

DUDI: (levando o indicador à boca) Mm. Falta algo. Sim, sim, você dizia? Contar, pois não? Então – com você, somos três. Agora descanse.

VIVI: (ainda meio dormindo) Três? Pode ser. Mas dessa vez tem que ser com homem.

FRED: Não é isso, papai. Eu, bem, preciso contar uma coisa e... não sei como começar.

DUDI: Wow, me deixa adivinhar. Você vai dizer que ficou no armário por tanto, mas tanto tempo, que acabou se especializando em interiores e agora quer ser decorador de closets. Ou seja, praticar o vergonhoso ato que em nossa família não ousa dizer seu nome: trabalhar. Acertei? Não, a pergunta é – onde foi que eu errei?

FRED: Não, papai, é que...

DUDI: (provando novamente o Curaçao) Não, onde foi que eu errei no drinque? Mnham, mnham. Pouco leite de coco.

VIVI: (ainda meio dormindo) Leite de coco? Mm. Seu pervertido. Mas eu topo.

FRED: Não é nada disso. Vocês podem me ouvir?

VIVI: (finalmente acordando) Agora eu posso, filhinho. Fala então mais baixo, pra mamãe voltar a dormir. É pedir muito? Mm?

FRED: Olha, já que eu não sei por onde começar, vou direto ao assunto. Preciso confessar. Eu... Hã... Bem. Vocês são adotados.

VIVI: Certo. Este tom está bom (volta a dormir).

FRED: Vocês não ouviram? Vocês foram adotados! Quando eu tinha dois anos!

DUDI: (depois de uma leve tremidinha no copo do drinque) Prove.

FRED: Eu tenho os documentos, tenho a...

DUDI: (estende o drinque) Não, prove aqui e me diga se falta algo.

FRED: Sem essas ambivalências óbvias, papai. Você acaba de pedir provas da adoção – mas pra não perder o aplomb se deu ao trabalho de partir pro duplo sentido espirituoso.

DUDI: Wow, eu e “trabalho” na mesma frase? Ah, a impertinência geracional. Mas OK. Prove que somos adotados.

FRED: (mostra os documentos de adoção) Tudo aqui. Registrado em cartório. Os Dudi e Vivi verdadeiros acordavam cedo; ele tocava os negócios da empresa e ela era artista plástica premiada – ambos a vergonha da família. Foi então que vovô resolveu matá-los – ou enviá-los a Saquarema, não lembro agora – e colocar um casal anônimo no lugar. Foram implantadas memórias falsas em suas mentes. Tão falsas quanto a fortuna que vocês ostentam hoje. E assim tudo voltou ao que era.

DUDI: (percebendo que as tremidas no copo quase fizeram o drinque ficar no ponto) Sei. E por que você resolveu contar tudo agora?

FRED: (mexendo com o dedão do pé a água da piscina) Sei lá. Achei que vocês já estavam em idade de saber. Antes que seus colegas de pólo começassem a fazer fofoquinha. Vocês precisavam ouvir de mim.

DUDI: (bebericando o drinque, ainda não satisfeito) Wow, então ficamos como – eu e sua mãe, em crise de identidade, partimos numa jornada alegórico-emocional em busca de nosso filho verdadeiro? O encontro vai ser marcado por uma contida cordialidade e no final voltaremos pra você, convictos de que filho não é só quem nasce, mas quem suporta a lassidão paterna?

FRED: (nem disfarçando a comoção) Sabia que você ia entender, papai. Suas passagens pra Botucatu já estão compradas. Já acertei tudo pra, em sua volta, posarmos todos – inclusive o filho legítimo – para matérias da Caras e da Quem.

DUDI: Ué. Não tenho mesmo nenhuma reunião da empresa pra não ir nas próximas duas semanas. Fechado.

Fred retira-se do deck, assoviando "Começar de Novo", de Ivan Lins e Vítor Martins.

VIVI: (acordando) Perdi alguma coisa?

DUDI: Não muito. Nosso filho com crise de meia-adolescência. Descansa. (descobre então que no drinque não tem a cereja). Voilà! Falta ela!

VIVI: (meio dormindo, meio acordada) Tá bom, tá bom, pode ser mulher, então (vira-se a cabeça para o lado, para exercitar-se). Seu tarado. Mas eu te amo. Viu? 

domingo, 17 de junho de 2012

Silicone com picanha


Cenário: restaurante.
Personagens: dois casais, Carlo e Teresa, Chico e Letícia.
Trilha ambiente do restaurante: “Beyond the sea”, com Bobby Darin.


(em diálogos cruzados, Teresa conversa com Letícia e Carlo conversa com Chico)

TERESA: ...e o Luís Fabiano perdeu três, três chances na cara do gol, caraca!

LETÍCIA: Mas o Lucas compensou, ué. A tabela não tava funcionando mas quando ele marcou aquele golaço de cabeça, o Coritiba, ó (faz sinal de top-top com a mão), perdeu o rumo de casa.

TERESA: Mas depois ele cansou. O Leão tinha que ter posto o Ademílson!

CARLO: ...Aí eu voltei pro pilates. Sabe que eu até acho divertido?

CHICO: Ah, pelo menos não é monótono, né? Porque esteira, eu vou te falar...

CARLO: Aí eu já prefiro o spinning. Se é pra andar sem sair do lugar, fico muito menos chateado pedalando.

CHICO: (tira o guardanapo do colo, sinalizando que vai ao banheiro) Gente... cês dão licença?

CARLO: Eu vou também (levanta-se).

(Saem os dois)

TERESA: (rindo, para Letícia) Sabe que eu nunca entendi esse lance de homem sempre ir de dois pro banheiro?

LETÍCIA: (com certo tédio) Ah, isso é deles. Deve ser pra fofocar ou retocar a loção pós-barba. (olha para além do ombro de Teresa e cochicha) E você viu a mala do loiraço de blazer cinza, naquela mesa?

(estamos agora no banheiro. Carlo e Chico urinam)

CARLO (olhando para o pinto de Chico): Silicone? Jura?

CHICO: Deu pra notar?

CARLO: Deu, mas ao mesmo tempo parece... natural.

CHICO: Então, pega...

CARLO: Ah...

CHICO: Ah, vai, pega pra sentir.

(Carlo segura o pinto de Chico e fica um tempo com ele)

CARLO: É... parece natural mesmo.

CHICO: Né não? Eu quis botar só uns 80 ml. Dava vergonha, sabe, ir na academia de roupa justa e não aparecer nada. Auto-estima lá embaixo, ó.

(voltamos à cena da mesa, com Teresa e Letícia)

TERESA: ...Mas o Chico põe silicone no pinto e você fica babando aí pra mala dos outros, sua filha da puta? (riem, as duas, baixo)

LETÍCIA: Ah, é... o que você achou?

TERESA: Da mala do loiraço?

LETÍCIA: Não, ô! Do pinto do Chico. (ri)

TERESA: Uai, evitei ficar olhando muito pra ele não ficar sem graça. Mas, assim... precisava mesmo?

LETÍCIA: Ah, sabe como é homem quando cisma com essas coisas. Ia pra praia de sunga e passava vergonha.

TERESA: E na cama?

LETÍCIA: Ué, ele... (faz um discretíssimo aceno com a cabeça) Olhaí, tão voltando.

(Chico e Carlo sentam-se à mesa)

TERESA:...Então, quatro bolas no pé que não viram gol, ó, ó, pra mim é banco de reserva na partida que vem, viu.

LETÍCIA: E cê acha que o Mano não chama mais o Luís Fabiano?

(Chico e Carlo trocam divertidos olhares cifrados como que captando a evidente dissimulação da conversa das mulheres. O garçom chega e entrega o cardápio aos dois homens)

CHICO: Acho que vou querer salada.

CARLO: (pousando a mão na de Teresa) Amor, você reparou alguma coisa diferente no Chico?

CHICO: (ficando vermelho e cobrindo o rosto com o cardápio) Ah, Carlo, para.

LETÍCIA: (para Chico, passando a mão no cabelo dele) Uai, amor... se fez, por que essa vergonha? Hein?

(Nisso, o loiro de blazer paga a conta, levanta-se e vai embora, passando pela mesa deles. Nota-se que ele usa uma calça justíssima, e por mais que disfarcem, Letícia e Teresa registram com o canto do olho a passagem dele. Chico, um tanto decepcionado, dá um curto suspiro. Carlo o acompanha no desencanto)

CHICO: O meu cabelo, Teresa. Mudei o corte de cabelo. É isso.

TERESA: Ah...

(fica um denso silêncio por alguns instantes na mesa. O garçom dá sinal que vai se afastar, mas Chico faz sinal que ele volte).

CHICO: (Com voz levemente mais grossa) Desisti da salada. Traz uma picanha.

CARLO: E eu quero batata frita. Ah, cancela o Sauvignon que eu pedi e traz um chope.

TERESA (inclina a cabeça para um rapidíssimo sussurro com Teresa) Ah,  preguiça quando eles começam com esses chiliquinhos...

CARLO:  (para Letícia) O que cê falou aí? Hein?

TERESA: (tenta dar uma apertadinha no ombro dele) Ah, amor, nada não. Não preocupa sua linda cabecinha com...

CARLO: (tirando o guardanapo do colo e jogando na mesa, falando mais grosso ainda do que Chico) Não fala nesse tom comigo! Não fala nesse tom comigo!

(o restaurante inteiro olha. O garçom, que não é besta nem nada, se afasta rapidinho. A trilha ambiente passa para “My Love for You”, com Johnny Mathis)

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Compota de Nêspera

Ela: “E em vida depois da morte você não acredita meeeeeesmo?”
Ele: “Ha.”
Ela: “Sem chance?”
Ele: “Sem chance.”
Ela: “E vai que – sei lá – eu quisesse mandar uma mensagem do além pra você?”
Ele: “It won’t happen, babe”.
Ela: “Uma mensagem minha, poxa.”
Ele: “Desculpa: eu não ia acreditar.”
Ela: “E se uma pessoa te dissesse que tinha um recado meu pra você?”
Ele: “Eu mandava passear.”
Ela: “E se ela te mandasse um e-mail?”
Ele: “Eu deletava.”
Ela: “E se a pessoa insistisse, fosse até sua casa?”
Ele: “Eu batia a porta na cara”.
Ela: “E se ela encostasse a boca na fresta da porta fechada, pedisse uma última chance; aí falasse pra você encostar o ouvido no outro lado da porta, e então sussurrasse que eu pedi pra te falar ‘compota de nêspera’ – você acreditava?”
Ele: “Ah.”
Ela: “Fala.”
Ele: “Ué.”
Ela: “Fala, caramba.”
Ele: “Acreditava.”
Ela: “Mesmo?”
Ele: “Com ‘compota de nêspera’ eu acreditava que era você.”
Ela: “Então tá. Que bom. Só pra saber.”
Ele: “Certo.”
Ela: “Esquece.”
Ele: “Esqueci.”
Ela: “Sério.”
Ele: “Já esqueci, ué.”
Ela: “Ok. Agora acorda, baby. Devagar, bem devagarinho. Viu?”

Travesseiro branquinho do lado. Limpo. Frio. Vazio.

domingo, 29 de abril de 2012

Ensaio Sobre a Preguiça

A Preguiça é a mãe de todos uns negócios aí que agora eu realmente não lembro. Seria o quê, de todos os filhos da puta? Não, nada tão incisivamente autocrítico. Eu sei que ela é mãe de todos os qualquer coisa, que tanto podem ser suplentes de deputados do DEM quanto, sei lá, bichinhos. Não sei se faz sentido, mas soa bem: os bichinhos também são filhos da Preguiça. Daí os bichos-preguiça. Pode ser. Realmente não lembro.


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Dizem que a Preguiça mata. Logo, além de mãe ela também é assassina. Temos então que a preguiça é uma espécie de Ma Barker, com a cara da Shelley Winters, empunhando uma metranca fumegante e mascando um charuto apagado. E as manchetes: “Preguiça mata vinte e oito durante missa do Papa na Praça de São Pedro”. “Catorze mortos pela Preguiça durante gravação de um programa de entrevistas no Canal Futura”. Vai ver os caras mexeram com os bichinhos de que ela cuida, aí pá. Shelley Winters, você sabe, nunca perdoa.


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Mas tem um detalhe. A Preguiça morre de preguiça de ser associada à malemolência brasileira. “Macunaíma é um personagem um tanto unidimensional, sabe”, disse ela em recente coletiva. “Eu preferia ser literariamente corporificada por uma personagem da Jane Austen. O clima é melhor, as roupas também, e ah, as festas, as festas. Já pensou, Razão, Sensibilidade e Preguiça?” A Penguin Books ficou de pensar no assunto.


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A Preguiça é vilipendiada. A Preguiça tem a imagem distorcida. A Preguiça é a prostituta da Babilônia. A Preguiça sempre tem seu significado intrínseco violentado. A Preguiça é o bode expiatório. A Preguiça é apressadamente apontada como o elemento pernicioso do caráter nacional. A Preguiça é invariavelmente responsabilizada pelo desandar do sistema educional. A Preguiça é tida e havida como a culpada por testemunharmos a orgia institucional em Brasília e não fazermos nada. A Preguiça sempre é acusada de ser a vilã do cenário de imobilidade subtropical. E quer saber? A safada gosta.


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A Preguiça é a mãe de todos os – o quê, o quê? Caramba. Esqueci mesmo. Minha intenção, para fechar o texto, era retomar o tema do primeiro tópico – me lembrando então num estalo de quem a Preguiça é mãe – e arrematar que eu estaria, tcharan!, com preguiça de terminar o texto. Não critiquem, seus filisteus: eu sempre utilizo essa técnica enganadoramente cômoda e previsível para concluir meus posts. Certo ou errado, é mais forte que eu. Aliás, é mais que um maneirismo. Chega a ser vício, puro vício. Mas posso garantir que eu preferiria, ao invés de ficar me safando com estes truquezinhos metalinguísticos tão viciantes, me lembrar logo de quem diabos a Preguiça é mãe. Saco.

domingo, 8 de abril de 2012

Cena de Páscoa

Cenário: Santo Sepulcro, 33. d.C., manhã de domingo de Páscoa.
Personagens: Arcanjo Gabriel, Arcanjo Miguel e Jesus.

Escuro total. A pesada pedra redonda que serve de porta do sepulcro é rolada lentamente por Gabriel e Miguel, o que inunda de luz o cenário. Nele, vemos a tumba fechada.

MIGUEL: (recostando-se na pedra redonda, após terminarem de rolá-la) Putz, que dia é hoje?

GABRIEL: Domingo.

MIGUEL: Ainda bem que o Shabat foi ontem... Porque descansar carregando pedra, vou te contar... hein? Hein? Hein?

GABRIEL (fazendo um muxoxo): Você já foi melhor com piada.

MIGUEL: Ah, vá. Quando eu fiz aquele stand-up anteontem falando que o Lúcifer era o anjo caído porque caía em tudo que era pegadinha, você riu que foi uma beleza.

GABRIEL: Eu não ri, eu fiz ha-ha-ha. Você não percebe ironia?

MIGUEL: Você é que não percebe sarcasmo.

GABRIEL: Escuta, vamos ao que interessa... traz o aparelho?

Miguel sai murmurando “mnhemerelho, menhenmerelho”, vai brevemente até lá fora e volta com um aparelho portátil de ressuscitação.

GABRIEL: Agora retira a pedra de cima da tumba. E sem piada manjada, dessa vez.

MIGUEL: (contrariado, equanto retira a pedra) Interessante, isso. Você foi o eleito pra dar a notícia à Virgem, quando ela ficou grávida. Agora, você foi escolhido pra comandar a ressuscitação. E eu aqui, só carregando peso?

GABRIEL: (impaciente) Ah, o fato de você ter aberto o Mar Negro quando o Moisés estava fugindo do Faraó não deve ter influenciado em nada, né? O coitado, lá, afobado, jurando que o Mar Vermelho ia se abrir, passando a maior vergonha na frente dos hebreus, e você...

MIGUEL: E eu tenho culpa de ser daltônico?

GABRIEL: (estendendo a mão, dando a entender que quer encerrar o assunto) Desfibrilador.

MIGUEL: (resmungando) mnhembrilador, mnhembrilador... Pronto, tá aqui.

Gabriel pega os eletrodos, esfrega um no outro e os coloca sobre o peito do cadáver dentro da tumba.

GABRIEL: Carga!

Miguel aperta um botão no aparelho portátil. Expectativa.

GABRIEL: (observando que o cadáver nem se mexeu) Ué... Acho que capricharam na crucificação... (volta a esfregar os eletrodos um no outro) Carga de novo!

MIGUEL: Você tem certeza de que hoje é domingo?

GABRIEL: (perdendo de vez a paciência) Escuta, se eu quisesse ter certeza disso, trazia um calendário, ao invés de você – inclusive um calendário ia ter piadas melhores! Agora faz o que eu mandei: carga!

MIGUEL (resmungando): mnhenarga, mnhenarga...(aperta novamente o botão).

GABRIEL: (depois de constatar que o cadáver continua imóvel) Caramba... O que os romanos são ruins em clothing style eles são bons em crucificação... Fizeram o serviço completo...

De repente, de um canto escuro do sepulcro onde ninguém estava reparando, salta Jesus, rindo.

Jesus: Tcharaaan! Surpresaaaaa! Eu já ressusciteeeei! Esse aí era um dos ladrões que estavam do meu lado, que eu coloquei aí só pra...

Gabriel e Miguel levam um susto, morrem do coração e caem os dois na tumba.

Jesus: Er.. oi? (pega o pulso de Gabriel, observa, depois faz o mesmo com Miguel. Então olha o quadro geral – os três cadáveres na tumba – e se põe a roer as unhas) Ih, agora é que o Velho me crucifica de novo...

Pausa. Jesus vê então o aparelho de ressuscitação, pega os eletrodos do desfibrilador e fica olhando, confuso, dando a entender que sozinho não vai poder fazer nada com aquilo. De repente ele ouve barulho lá fora, vai até a porta do sepulcro, parece ver alguém e se entusiasma.

Jesus: Madalena! Você não morre mais! Tava pensando em você! Ei, que cara é essa, parece que viu um fantasma? Vem cá, você pode me ajudar aqui com...

FIM

domingo, 1 de abril de 2012

Love and Death

Era um continho bem, mas bem raquítico, nascido prematuro, sem condições ainda de ser divulgado nem lido. Daí o autor tê-lo colocado na incubadora: todos os dias ele vinha visitar o conto tão mirradinho, de arcabouço frágil, situações incipientes, diálogos padecendo de disritmia e falta de fôlego — tanto que respirava por meio de aparelhos, aqueles tubos e aqueles êmbolos tão grandes e barulhentos para um continho como ele. O autor enfiava a mão na incubadora pela abertura circular e, com a luva de borracha, tocava nos dedinhos do conto, que de tão miudinhos mal conseguiam se fechar na ponta do polegar dele. O autor sussurrava, quase cantando, quase mais pensando do que falando, “Um dia você vai ser incluído na antologia do século e nós vamos rir disso tudo”. E o autor gostava de achar que os dedinhos do continho davam uma apertadinha em seu polegar. Mas lá pelo segundo ou terceiro dia, enquanto pajeava o continho, o autor percebeu as enfermeiras rindo e cochichando, atrás do vidro da sala da incubadora. Então ele, que além de arrebatado era um autor suscetível a certo tipo de crítica, foi ver que tititi era aquele – e uma das enfermeiras não demorou a soltar que corria por aí que aquele continho, sabe, podia não ser dele. Mas — ela emendou — era só boato maldoso, imagina. De gente invejosa. Falou e foi embora. O autor sentiu o chão rodar e faltar ao mesmo tempo, a garganta entalar, e depois de uns cardíacos minutos voltou até a incubadora. Enquanto o sangue lhe voltava devagar ao rosto ele observava o continho mirradinho, de olhinho fechado, dormindo. E esperou, esperou, esperou até ficar tarde, até não ter ninguém por perto – aí foi à máquina de oxigênio da incubadora e nem hesitou para desligar. O barulho parou mas não de repente. O autor apagou a luz da sala, pegou o casaco e só então lembrou que tinha guardado no bolso um pacote. Um pacote contendo uma roupagenzinha para o continho, para ser colocada assim que pudessem ir para casa. Uma roupagenzinha pequenininha, engraçadinha, do tamanhinho exato do conto e que revestiria a criaturinha de um estilo e de um acabamento que fariam as visitas dizer “é a sua cara”. O autor olhou para trás, guardando no labirinto do ouvido o seco e esticado silêncio da máquina de oxigênio, foi até a lata de lixo, jogou o pacote e saiu do hospital. Lá fora a brisa carregada de motes para histórias de amor e morte circulava sem muita pressa, com alguma melodia e um tanto assim úmida.